Príncipe Mulay Hicham, do Marrocos, prega abertura política antes que seu país também seja sacudido por protestos
PARIS - O príncipe Mulay Hicham, de 46 anos e terceiro na linha de sucessão no trono do Marrocos, considera, em entrevista telefônica concedida em Paris ao jornal espanhol "El País", que a revolta que sacode o sul do Mediterrâneo chegará a seu país. Autor de artigos acadêmicos sobre o mundo árabe, o príncipe fundou, na Universidade de Princeton, o Instituto de Estudos Contemporâneos Transregionais do Oriente Médio, Norte da África e Ásia Central.
Apelidado de "Príncipe Vermelho" devido à sua campanha pela democratização do regime político marroquino, Hicham já criticou publicamente em diversas ocasiões a monarquia do país, e por isso, mantém uma tensa relação com seu primo, o rei Mohamed VI, no poder há dez anos. Ele acredita que o governo de seu primo tem a difícil tarefa de redinamizar a vida política do país antes que também o Marrocos passe pela revolta popular que se propaga no mundo árabe.
Afirmando que o mal-estar na região podia ser constatado já há muitos anos, o príncipe sublinha que os acontecimentos na Tunísia e no Egito derrubaram o muro simbólico do medo erguido na cabeça dos árabes e, por isso, Rabat precisa promover reformas antes que seja tarde. "A amplitude do poder monárquico desde a independência é incompatível com as novas reivindicações", afirma Mulay Hicham.
O ano de 2011 está para o mundo árabe como 1989 para o comunismo?
MULAY HICHAM: O curso da História já havia mudado com a saída de Ben Ali. O antigo regime não pode mais ser mantido como era. O verbo "mudar" se conjuga no presente e no futuro. O muro do medo que impossibilitava qualquer sublevação popular, erguido na cabeça de cada cidadão, desmoronou. Isso abre espaço a protestos democráticos. A crise podia ser prevista há algum tempo. Percebíamos até pouco tempo atrás um profundo mal-estar. A novidade é a manifestação popular, que expõe um descontentamento em toda a região.
As revoluções tunisiana e egípcia têm relação com experiências anteriores?
HICHAM: São uma ruptura com os esquemas anteriores que inspiravam movimentos de protestos árabes há mais de duas décadas. O conflito árabe-israelense já não está mais no coração dos novos movimentos democráticos. O islamismo radical tampouco o inspira. O motivo que levou à Revolução de Jasmim na Tunísia não tem nenhum caráter religioso. Os novos movimentos já não estão marcados pelo anti-imperialismo nem pelo antissecularismo. Rechaçam assim a tese da exceção árabe. Supõem uma ruptura de geração. Além do mais, as novas tecnologias animam esses movimentos. Oferecem um novo rosto à sociedade civil. Esses movimentos são ao mesmo tempo nacionalistas e antiautoritários. São pan-árabes, mas com um novo enfoque, e rechaçam a versão antidemocrática dessa ideologia.
Que lições o Marrocos e a região devem tirar disso?
HICHAM: O Marrocos ainda não foi alcançado, mas não se engane: quase todos os sistemas autoritários serão afetados pela onda de protestos. O Marrocos provavelmente não será uma exceção. Vamos ver se a contestação será social ou também política, e se as formações políticas, impulsionadas pelos últimos acontecimentos, se animarão. Melhor praticar a abertura antes que cheguem os protestos. Dinamizar a vida política marroquina no contexto regional, evitando os radicalismos, será um grande desafio.
O Marrocos se parece com a Tunísia?
HICHAM: O Marrocos desfruta de um maior grau de mediação social entre o poder político e o povo. Mas essa mediação está amplamente desacreditada. Isso é demonstrado pela baixíssima participação nas eleições. Há outras diferenças importantes com a Tunísia. A população marroquina é mais diversa, sua ancoragem na História é mais antiga e suas diferenças sociais, mais acentuadas. O abismo entre as classes sociais dificulta a legitimidade do sistema político e econômico. As múltiplas modalidades de clientelismo no aparato de Estado põem em risco sua sobrevivência. Se a maioria dos atores sociais reconhecem a monarquia, eles estão descontentes com a forte concentração do poder em mãos do Executivo. A amplitude do poder monárquico desde a independência é incompatível com as novas reivindicações.
O senhor é um atento observador do mundo árabe. Em Rabat, lhe pediram algum conselho?
HICHAM: Ninguém pediu minha opinião. No país, sobram recursos intelectuais e políticos. Quero preservar minha autonomia intelectual. E tenho minhas obrigações com várias instituições internacionais.
A Europa tem algo a temer devido ao que acontece no lado sul do Mediterrâneo?
HICHAM: Nem a Europa nem o Ocidente em geral são determinantes. Os protestos pegaram de surpresa esses regimes mimados pelo Ocidente, sobretudo pela França no Norte da África. É a primeira vez desde a etapa colonial que o mundo árabe se autodetermina para alcançar uma democracia mediante manifestações nas ruas sem o respaldo do Ocidente. A Europa precisa acordar, deixar de apoiar ditaduras inviáveis e apoiar os movimentos que aspiram a uma mudança plural. É preciso acabar com a dicotomia maniqueísta que consiste em assustar com o islamismo para poder assim preservar o status quo. Nos novos movimentos sociais, a religião não desempenha nenhum papel. É uma geração mais secularizada que reivindica liberdade e dignidade. Isso não significa que o Islã político não desempenhará um papel no futuro dessas sociedades em vias de democratização. Será um elemento, entre outros, do tabuleiro político. O principal problema desses movimentos não é o islamismo, mas a ausência de liderança política.
Agência O Globo